A terra
“Esta província Santa Cruz está situada naquela grande América, uma das quatro partes do mundo. Dista o seu princípio dois graus da equinocial para a banda do sul, e daí se vai estendendo para o mesmo sul até quarenta e cinco graus. De maneira que parte dela fica situada debaixo da zona tórrida e parte debaixo da temperada. Está formado esta província à maneira de uma harpa, cuja costa pela banda do norte corre do oriente ao ocidente e está olhando diretamente a equinocial; e pela do sul confina com outras províncias da mesma América povoadas e possuídas de povo gentílico, com que ainda não temos comunicação.
Plantas
Primeiramente tratarei da planta e raiz de que os moradores fazem seus mantimentos que la comem em logar de pão. A raiz se chama mandioca e a planta de que se gera he de altura de hum homem pouco mais ou menos. Esta planta nam he muito grossa, e tem muitos nós.
Outra fruta há nesta terra muito melhor, e mais prezada dos moradores de todas, que se cria em uma planta humilde junto do chão: a qual planta tem umas pencas como de erva babosa. A esta fruta chamam ananases, e nascem como alcachofras, os quais parecem naturalmente pinhas, e são do mesmo tamanho, e algumas maiores. Depois que são maduros, têm um cheiro mui suave e comem-se aparados feitos em talhas. São tão saborosos que a juízo de todos não há fruta neste Reino que no gosto lhes faça vantagem.
sexta-feira, 17 de junho de 2011
língua de Pero de Magalhães Gândavo
Alguns vocábulos há nela de que não usam senão as fêmeas, e outros que não servem senão para os machos: carece de 3 letras , convém saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei e desta meneira vivem desordenadamente sem terem além disto conta nem peso, nem medida.
Costumes de Jean Lery
Quanto ao parto, eis o que presenciei. Pernoitando com outro frânces wm uma aldeia, certa ocasião, ouvimos, quase à meia-noite, gritos de mulher, e pensamos que estivesse sendo atacada pelo jaguar, essa fera caniceira que já decrevi. Acudismos imediatamente e verificamos que se tratava apenas de uma mulher em horas de parto. O pai recebeu a criança nos braços, depois de cortar com os dentes o cordão umbilical e amarrá-lo. Em seguida, continuando no seu oficio de parteira, esmagou com o polegar o nariz do filho, como é de praxe entre os selvagens do país. Note-se que as nossas parteiras, ao contrário, apertam o nariz aos recém-nascidos para dar maior beleza afilando-o.
Carta de piloto anonimo da frota de Pedro Alvares Cabral
De aspecto, esta gente são homens pardos, e andam nus sem vergonha e os seus cabelos compridos. E têm a barba pelada. E as pálpebras dos olhos e em cima delas eram pintadas com figuras de cores brancas e pretas e azuis e vermelhas. Têm o lábio da boca, isto é, o de baixo, furado, e nos buracos metem um osso grande como um prego. E outros trazem uma pedra azul e verde e comprida dependurada dos ditos buracos. As mulheres andam do mesmo modo sem vergonha e são belas de corpo, os cabelos compridos. E as suas casas são de madeira coberta de folhas e ramos de árvores com muitas colunas de madeira.
[...]
[...]
quarta-feira, 15 de junho de 2011
Quando no Espirito Santo, se Recebeu uma Reliquia das Onze Mil Virgens de José de Anchieta
Diabo - Temos embargos, donzela
a serdes deste lugar.
Não me queirais agravar,
que, com espada e rodela,
vos hei de fazer voltar.
Se lá na batalha do mar
me pisastes,
quando as onze mil juntastes,
que fizestes em Deus crer,
não há agora assim de ser.
Se, então, de mim triunfastes,
hoje vos hei de vencer.
Não tenho contradição
em toda a Capitania.
Antes, ela, sem porfia,
debaixo de minha mão
se rendeu com alegria.
Cuido que errastes a via
e o sol tomastes mal.
Tornai-vos a Portugal,
que não tendes sol nem dia,
senão a noite infernal
de pecados,
em que os homens, ensopados,
aborrecem sempre a luz.
Se lhes falardes na Cruz,
dar-vos-ão, mui agastados,
no peito, com um arcabuz.
(Aqui dispara um arcabuz.)
Anjo - Ó peçonhento dragão
e pai de toda a mentira,
que procuras perdição,
com mui furiosa ira,
contra a humana geração!
Tu, nesta povoação,
não tens mando nem poder,
pois todos pretendem ser,
de todo seu coração,
inimigo de Lucifer.
Diabo - Ó que valentes soldados!
Agora me quero rir!...
Mal me podem resistir
os que fracos, com pecados,
não fazem senão cair!
Anjo - Se caem, logo me levantam,
e outros ficam em pé.
Os quais, com armas da fé,
te resistem e te espantam,
porque Deus com eles é.
Que com excessivo amor
lhes manda suas esposas
- onze mil virgens formosas -,
cujo contínuo favor
dará palmas gloriosas.
E para te dar maior pena,
a tua soberba inchada
quer que seja derrubada
por uma mulher pequena.
Diabo - Ó que cruel estocada
me atiraste
quando a mulher nomeaste!
Porque mulher me matou,
mulher meu poder tirou,
e, dando comigo ao traste,
a cabeça me quebrou.
Anjo - Pois agora essa mulher
traz consigo estas mulheres,
que nesta terra hão de ser
as que lhe alcançam poder
para vencer teus poderes.
Diabo - Ai de mim, desventurado!
(Acolhe-se Satanás.)
Anjo - Ó traidor, aqui jarás
de pés e mãos amarrado,
pois que perturbas a paz
deste pueblo sossegado!
Diabo - Ó anjo, deixa-me já,
que tremo desta senhora!
Anjo - Com tanto que te vás fora
e nunca mais tornes cá.
Diabo - Ora seja na má hora!
(Indo-se, diz ao povo:)
Ó, deixai-vos descansar
sobre esta minha promessa:
eu darei volta, depressa,
a vossas casas cercar
e quebrar-vos a cabeça!
que nunca dantes me vi,
pois que ter-vos, mereci,
virgem mártir, por senhora.
O Senhor onipotente
me fez grande benefício,
dando-me aquela excelente
legião da esforçada gente
do grande mártir Maurício.
Neste dia
se dobra minha alegria
com vossa vinda, Senhora.
E, pois a Capitania
hoje tem maior valia,
mais rica me vejo agora.
Com a perpétua memória
de vossa mui santa vida
e da morte esclarecida,
com que alcançastes vitória,
morrendo sem ser vencida,
serei mais favorecida,
pois vindes moram em mim.
Porque, tendo-vos aqui,
fico mais enriquecida
que nunca dantes me vi.
Da Senhora da Vitória,
"Vitória" sou nomeada.
E, pois sou de vós amada,
de onze mil virgens na glória
espero ser coroada.
Por vós sou alevantada
mais do que nunca subi,
para que, subindo assim,
não seja mais derrubada,
pois que ter-vos mereci.
Meus filhos ficam honrados
em vos terem por princesa,
porque, de sua baixeza,
por vós serão levantados
a ver a divina alteza.
Tudo temos,
pois que tendo a vós, teremos
a Deus, que convosco mora,
e logos, desde esta hora,
todos vos reconhecemos,
virgem mártir, por Senhora.
Um companheiro de São Maurício
vem ao caminho à virgem, e diz:
Toda esta Capitania,
virgem mártir gloriosa,
está cheia de alegria,
pois recebe, neste dia,
uma mãe tão piedosa.
Nós somos seus padroeiros,
com toda nossa legião
dos tebanos cavaleiros,
soldados e companheiros
de Maurício Capitão.
Ele espera já por vós
e tem prestes a pousada
para, com vossa manada,
serdes, como somos nós,
deste lugar advogada.
Úrsula - Para isso sou mandada.
E com vossa companhia,
faremos mui grossa armada,
com que seja bem guardada
a nossa capitania.
Maurício - Não bastam forças humanas,
não digo para louvar,
mas nem para bem cuidar
as mercês tão soberanas
que, com amor singular,
Deus eterno,
abrindo o peito paterno,
faz a todo este lugar,
para que possa escapar
do bravo fogo do inferno,
e salvação alcançar.
Ditosa capitania,
que o sumo Pai e Senhor
abraça com tanto amor,
aumentando cada dia
suas graças e favor!
Vital - Ditosa, por certo, é,
se não for desconhecida,
ordenando sua vida
de modo que junte a fé
com caridade incendida.
Porque as mercês divinais
então são agradecidas
quando os corações leais
ordenam bem suas vidas
conforme as leis celestiais.
Maurício - Bem dizeis, irmão Vital,
e, por isso, os sabedores
dizem que obras são amores,
com que seu peito leal
mostram os bons amadores.
Vital - E destes, quantos cuidais
que se acham nesta terra?
Maurício - Muitos há, se bem olhais,
que contra os vícios mortais
andam em perpétua guerra,
e guardando, com cuidado,
a lei de seu Criador,
mostram bem o fino amor
que têm, no peito encerrado,
de Iesu, seu Salvador.
Vital - Estes tais sempre terão
lembrança do benefício
de terem por seu patrão,
com toda nossa legião,
a vós, Capitão Maurício.
Maurício - Assim têm.
E, por isso, o sumo bem
lhes manda aquelas senhoras
onze mil virgens, que vêm
para conosco, também,
serem suas guardadoras.
Vital - Tão gloriosas donzelas
merecem ser mui honradas.
Maurício - E conosco agasalhadas,
pois que são virgens tão belas,
de martírio coroadas!
Recebendo a virgem, diz:
Úrsula, grande princesa,
do sumo Deus mui amada,
boa seja a vossa entrada,
grande pastora e cabeça
de tão formosa manada!
Úrsula - Salve, grande Capitão
Maurício, de Deus querido!
Este povo é defendido
por vós e vossa legião
e nosso Deus mui servido.
Sou dele agora mandada
a ser vossa companheira.
Maurício - Defensora e padroeira
desta gente tão honrada,
que segue nossa bandeira.
Nós deles somos honrados,
eles guardados de nós.
Porque não sejamos sós,
serão agora ajudados
conosco também, de vós.
Úrsula - Se os nossos portugueses
nos quiserem sempre honrar,
sentirão poucos reveses.
De ingleses e franceses
seguros podem estar.
Vital - Quem levantará pendão
contra seis mil cavaleiros
de nossa forte legião,
e contra o grande esquadrão
de vossos onze milheiros?
Úrsula - Os três inimigos da alma
começam a desmaiar.
E, pois tem este lugar
nome de Vitória, e palma,
sempre deve triunfar.
Vitória - Isso é o que Deus quer.
Guardem eles seu mandado,
que nós teremos cuidado de guardar e engrandecer
este nosso povo amado.
Se quereis
aqui ficar, podereis.
Nem tendes melhor lugar
que aquele santo altar
no qual, conosco, sereis
venerada sem cessar.
Úrsula - Seja assim!
Recolhamo-nos aí,
com nosso senhor Jesus,
por cujo amor padeci,
abraçada com a cruz
em que ele morreu por mim.
Levando-a ao altar, lhe cantam:
Entrai ad altare Dei,
virgem mártir mui formosa,
pois que sois tão digna esposa
de Jesus, que é sumo rei.
Naquele lugar estreito
cabereis bem com Jesus,
pois ele, com sua cruz,
vos coube dentro no peito.
Ó virgem de grão respeito,
entrai ad altare Dei,
pois que sois tão digna esposa
de Jesus, que é sumo rei.
a serdes deste lugar.
Não me queirais agravar,
que, com espada e rodela,
vos hei de fazer voltar.
Se lá na batalha do mar
me pisastes,
quando as onze mil juntastes,
que fizestes em Deus crer,
não há agora assim de ser.
Se, então, de mim triunfastes,
hoje vos hei de vencer.
Não tenho contradição
em toda a Capitania.
Antes, ela, sem porfia,
debaixo de minha mão
se rendeu com alegria.
Cuido que errastes a via
e o sol tomastes mal.
Tornai-vos a Portugal,
que não tendes sol nem dia,
senão a noite infernal
de pecados,
em que os homens, ensopados,
aborrecem sempre a luz.
Se lhes falardes na Cruz,
dar-vos-ão, mui agastados,
no peito, com um arcabuz.
(Aqui dispara um arcabuz.)
Anjo - Ó peçonhento dragão
e pai de toda a mentira,
que procuras perdição,
com mui furiosa ira,
contra a humana geração!
Tu, nesta povoação,
não tens mando nem poder,
pois todos pretendem ser,
de todo seu coração,
inimigo de Lucifer.
Diabo - Ó que valentes soldados!
Agora me quero rir!...
Mal me podem resistir
os que fracos, com pecados,
não fazem senão cair!
Anjo - Se caem, logo me levantam,
e outros ficam em pé.
Os quais, com armas da fé,
te resistem e te espantam,
porque Deus com eles é.
Que com excessivo amor
lhes manda suas esposas
- onze mil virgens formosas -,
cujo contínuo favor
dará palmas gloriosas.
E para te dar maior pena,
a tua soberba inchada
quer que seja derrubada
por uma mulher pequena.
Diabo - Ó que cruel estocada
me atiraste
quando a mulher nomeaste!
Porque mulher me matou,
mulher meu poder tirou,
e, dando comigo ao traste,
a cabeça me quebrou.
Anjo - Pois agora essa mulher
traz consigo estas mulheres,
que nesta terra hão de ser
as que lhe alcançam poder
para vencer teus poderes.
Diabo - Ai de mim, desventurado!
(Acolhe-se Satanás.)
Anjo - Ó traidor, aqui jarás
de pés e mãos amarrado,
pois que perturbas a paz
deste pueblo sossegado!
Diabo - Ó anjo, deixa-me já,
que tremo desta senhora!
Anjo - Com tanto que te vás fora
e nunca mais tornes cá.
Diabo - Ora seja na má hora!
(Indo-se, diz ao povo:)
Ó, deixai-vos descansar
sobre esta minha promessa:
eu darei volta, depressa,
a vossas casas cercar
e quebrar-vos a cabeça!
II
Vila - Mais rica me vejo agoraque nunca dantes me vi,
pois que ter-vos, mereci,
virgem mártir, por senhora.
O Senhor onipotente
me fez grande benefício,
dando-me aquela excelente
legião da esforçada gente
do grande mártir Maurício.
Neste dia
se dobra minha alegria
com vossa vinda, Senhora.
E, pois a Capitania
hoje tem maior valia,
mais rica me vejo agora.
Com a perpétua memória
de vossa mui santa vida
e da morte esclarecida,
com que alcançastes vitória,
morrendo sem ser vencida,
serei mais favorecida,
pois vindes moram em mim.
Porque, tendo-vos aqui,
fico mais enriquecida
que nunca dantes me vi.
Da Senhora da Vitória,
"Vitória" sou nomeada.
E, pois sou de vós amada,
de onze mil virgens na glória
espero ser coroada.
Por vós sou alevantada
mais do que nunca subi,
para que, subindo assim,
não seja mais derrubada,
pois que ter-vos mereci.
Meus filhos ficam honrados
em vos terem por princesa,
porque, de sua baixeza,
por vós serão levantados
a ver a divina alteza.
Tudo temos,
pois que tendo a vós, teremos
a Deus, que convosco mora,
e logos, desde esta hora,
todos vos reconhecemos,
virgem mártir, por Senhora.
Um companheiro de São Maurício
vem ao caminho à virgem, e diz:
Toda esta Capitania,
virgem mártir gloriosa,
está cheia de alegria,
pois recebe, neste dia,
uma mãe tão piedosa.
Nós somos seus padroeiros,
com toda nossa legião
dos tebanos cavaleiros,
soldados e companheiros
de Maurício Capitão.
Ele espera já por vós
e tem prestes a pousada
para, com vossa manada,
serdes, como somos nós,
deste lugar advogada.
Úrsula - Para isso sou mandada.
E com vossa companhia,
faremos mui grossa armada,
com que seja bem guardada
a nossa capitania.
III
Ao entrar da igreja, fala São Maurício com são Vital, e diz:Maurício - Não bastam forças humanas,
não digo para louvar,
mas nem para bem cuidar
as mercês tão soberanas
que, com amor singular,
Deus eterno,
abrindo o peito paterno,
faz a todo este lugar,
para que possa escapar
do bravo fogo do inferno,
e salvação alcançar.
Ditosa capitania,
que o sumo Pai e Senhor
abraça com tanto amor,
aumentando cada dia
suas graças e favor!
Vital - Ditosa, por certo, é,
se não for desconhecida,
ordenando sua vida
de modo que junte a fé
com caridade incendida.
Porque as mercês divinais
então são agradecidas
quando os corações leais
ordenam bem suas vidas
conforme as leis celestiais.
Maurício - Bem dizeis, irmão Vital,
e, por isso, os sabedores
dizem que obras são amores,
com que seu peito leal
mostram os bons amadores.
Vital - E destes, quantos cuidais
que se acham nesta terra?
Maurício - Muitos há, se bem olhais,
que contra os vícios mortais
andam em perpétua guerra,
e guardando, com cuidado,
a lei de seu Criador,
mostram bem o fino amor
que têm, no peito encerrado,
de Iesu, seu Salvador.
Vital - Estes tais sempre terão
lembrança do benefício
de terem por seu patrão,
com toda nossa legião,
a vós, Capitão Maurício.
Maurício - Assim têm.
E, por isso, o sumo bem
lhes manda aquelas senhoras
onze mil virgens, que vêm
para conosco, também,
serem suas guardadoras.
Vital - Tão gloriosas donzelas
merecem ser mui honradas.
Maurício - E conosco agasalhadas,
pois que são virgens tão belas,
de martírio coroadas!
Recebendo a virgem, diz:
Úrsula, grande princesa,
do sumo Deus mui amada,
boa seja a vossa entrada,
grande pastora e cabeça
de tão formosa manada!
Úrsula - Salve, grande Capitão
Maurício, de Deus querido!
Este povo é defendido
por vós e vossa legião
e nosso Deus mui servido.
Sou dele agora mandada
a ser vossa companheira.
Maurício - Defensora e padroeira
desta gente tão honrada,
que segue nossa bandeira.
Nós deles somos honrados,
eles guardados de nós.
Porque não sejamos sós,
serão agora ajudados
conosco também, de vós.
Úrsula - Se os nossos portugueses
nos quiserem sempre honrar,
sentirão poucos reveses.
De ingleses e franceses
seguros podem estar.
Vital - Quem levantará pendão
contra seis mil cavaleiros
de nossa forte legião,
e contra o grande esquadrão
de vossos onze milheiros?
Úrsula - Os três inimigos da alma
começam a desmaiar.
E, pois tem este lugar
nome de Vitória, e palma,
sempre deve triunfar.
Vitória - Isso é o que Deus quer.
Guardem eles seu mandado,
que nós teremos cuidado de guardar e engrandecer
este nosso povo amado.
Se quereis
aqui ficar, podereis.
Nem tendes melhor lugar
que aquele santo altar
no qual, conosco, sereis
venerada sem cessar.
Úrsula - Seja assim!
Recolhamo-nos aí,
com nosso senhor Jesus,
por cujo amor padeci,
abraçada com a cruz
em que ele morreu por mim.
Levando-a ao altar, lhe cantam:
Entrai ad altare Dei,
virgem mártir mui formosa,
pois que sois tão digna esposa
de Jesus, que é sumo rei.
Naquele lugar estreito
cabereis bem com Jesus,
pois ele, com sua cruz,
vos coube dentro no peito.
Ó virgem de grão respeito,
entrai ad altare Dei,
pois que sois tão digna esposa
de Jesus, que é sumo rei.
Ao Santíssimo Sacramento de José de Anchieta
Oh que pão, oh que comida,
Oh que divino manjar
Se nos dá no santo altar
Filho da Virgem Maria
Que Deus Padre cá mandou
E por nós na cruz passou
E para que nos conforte
Se deixou no Sacramento
Para dar-nos com aumento
Esta divina fogaça
É manjar de lutadores,
Galardão de vencedores
Deleite de enamorados
Que com o gosto deste pão
Deixem a deleitarão
Quem quiser haver vitória
Do falso contentamento,
Goste deste sacramento
Ele dá vida imortal,
Este mata toda fome,
Porque nele Deus é homem
É fonte de todo bem
Da qual quem bem se embebeda
Não tenha medo de queda
Oh! que divino bocado
Que tem todos os sabores,
Vindes, pobres pecadores,
Não tendes de que temer
Senão de vossos pecados;
Se forem bem confessados,
Que este manjar tudo gasta,
Porque é fogo gastador,
Que com seu divino ardor
É pão dos filhos de casa
Com que sempre se sustentam
E virtudes acrescentam
Todo al é desatino
Se não comer tal vianda,
Com que a alma sempre anda
Este manjar aproveita
Para vícios arrancar
E virtudes arraigar
Suas graças são tamanhas,
Que se não podem contar,
Mas bem se podem gostar
Sua graça se derrama
Nos devotos corações
E os enche de benções
Oh que entranhas piedosas
De vosso divino amor!
Ó meu Deus e meu Senhor
Quem vos fez tão namorado
De quem tanto vos ofende?!
Quem vos ata, quem vos prende
Por caber dentro de nós
Vos fazeis tão pequenino
Sem o vosso ser divino,
Para vosso amor plantar
Dentro em nosso coração
Achastes tal invenção
Em o qual nosso padar
Acha gostos diferentes
Debaixo dos acidentes
Uns são todos incendidos
Do fogo de vosso amor,
Outros cheios de temor
Outros com o celestial
Lume deste sacramento
Alcançam conhecimento
Outros sentem compaixão
De seu Deus que tantas dores
Por nos dar estes sabores
E desejam de morrer
Por amor de seu amado,
Vivendo sem ter cuidado
Quem viu nunca tal comida
Que é o sumo de todo bem,
Ai de nós que nos detém
Como não nos enfrascamos
Nos deleites deste Pão
Com que o nosso coração
Se buscarmos formosura
Nele está toda metida,
Se queremos achar vida,
Aqui se refina a fé,
Pois debaixo do que vemos,
Estar Deus e homem cremos
Acrescenta-se a esperança,
Pois na terra nos é dado
Quanto lá nos céus guardado
A caridade que lá
Há de ser aperfeiçoada,
Deste pão é confirmada
Dele nasce a fortaleza,
Ele dá perseverança,
Pão da bem-aventurança,
Deixado para memória
Da morte do Redentor,
Testemunho de Seu amor
Oh mansíssimo Cordeiro,
Oh menino de Belém,
Oh Jesus todo meu Bem,
Meu Esposo, meu Senhor,
Meu amigo, meu irmão,
Centro do meu coração,
Pois com entranhas de Mãe
Quereis de mim ser comido,
Roubai todo meu sentido
Prendei-me com fortes nós,
Iesu, filho de Deus vivo,
pois que sou vosso cativo,
Com o sangue que derramastes,
Com a vida que perdestes,
Com a morte que quisestes
Morra eu, por que viver
Vós possais dentro de mim;
Ganha-me, pois me perdi
Pois que para incorporar-me
E mudar-me em vós de todo,
Com um tão divino modo
Quando na minha alma entrais
É dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário
Enquanto a presença tarda
De vosso divino rosto,
O saboroso e doce gosto
Seja minha refeição
E todo o meu apetite,
Seja gracioso convite
Ar fresco de minha calma,
Fogo de minha frieza,
Fonte viva de limpeza,
Mitigador do desejo
Com que a vós suspiro, e gemo,
Esperança do que temo
Pois não vivo sem comer,
Como a vós, em vós vivendo,
Vivo em vós, a vós comendo,
Comendo de tal penhor,
Nela tenha minha parte,
E depois de vós me farte
Oh que divino manjar
Se nos dá no santo altar
Cada dia.
Filho da Virgem Maria
Que Deus Padre cá mandou
E por nós na cruz passou
Crua morte.
E para que nos conforte
Se deixou no Sacramento
Para dar-nos com aumento
Sua graça.
Esta divina fogaça
É manjar de lutadores,
Galardão de vencedores
Esforçados.
Deleite de enamorados
Que com o gosto deste pão
Deixem a deleitarão
Transitória.
Quem quiser haver vitória
Do falso contentamento,
Goste deste sacramento
Divinal.
Ele dá vida imortal,
Este mata toda fome,
Porque nele Deus é homem
Se contêm.
É fonte de todo bem
Da qual quem bem se embebeda
Não tenha medo de queda
Do pecado.
Oh! que divino bocado
Que tem todos os sabores,
Vindes, pobres pecadores,
A comer.
Não tendes de que temer
Senão de vossos pecados;
Se forem bem confessados,
Isso basta.
Que este manjar tudo gasta,
Porque é fogo gastador,
Que com seu divino ardor
Tudo abrasa.
É pão dos filhos de casa
Com que sempre se sustentam
E virtudes acrescentam
De contino.
Todo al é desatino
Se não comer tal vianda,
Com que a alma sempre anda
Satisfeita.
Este manjar aproveita
Para vícios arrancar
E virtudes arraigar
Nas entranhas.
Suas graças são tamanhas,
Que se não podem contar,
Mas bem se podem gostar
De quem ama.
Sua graça se derrama
Nos devotos corações
E os enche de benções
Copiosas.
Oh que entranhas piedosas
De vosso divino amor!
Ó meu Deus e meu Senhor
Humanado!
Quem vos fez tão namorado
De quem tanto vos ofende?!
Quem vos ata, quem vos prende
Com tais nós?!
Por caber dentro de nós
Vos fazeis tão pequenino
Sem o vosso ser divino,
Se mudar.
Para vosso amor plantar
Dentro em nosso coração
Achastes tal invenção
De manjar,
Em o qual nosso padar
Acha gostos diferentes
Debaixo dos acidentes
Escondidos.
Uns são todos incendidos
Do fogo de vosso amor,
Outros cheios de temor
Filial,
Outros com o celestial
Lume deste sacramento
Alcançam conhecimento
De quem são,
Outros sentem compaixão
De seu Deus que tantas dores
Por nos dar estes sabores
Quis sofrer.
E desejam de morrer
Por amor de seu amado,
Vivendo sem ter cuidado
Desta vida.
Quem viu nunca tal comida
Que é o sumo de todo bem,
Ai de nós que nos detém
Que buscamos!
Como não nos enfrascamos
Nos deleites deste Pão
Com que o nosso coração
Tem fartura.
Se buscarmos formosura
Nele está toda metida,
Se queremos achar vida,
Esta é.
Aqui se refina a fé,
Pois debaixo do que vemos,
Estar Deus e homem cremos
Sem mudança.
Acrescenta-se a esperança,
Pois na terra nos é dado
Quanto lá nos céus guardado
Nos está.
A caridade que lá
Há de ser aperfeiçoada,
Deste pão é confirmada
Em pureza.
Dele nasce a fortaleza,
Ele dá perseverança,
Pão da bem-aventurança,
Pão de glória.
Deixado para memória
Da morte do Redentor,
Testemunho de Seu amor
Verdadeiro.
Oh mansíssimo Cordeiro,
Oh menino de Belém,
Oh Jesus todo meu Bem,
Meu Amor.
Meu Esposo, meu Senhor,
Meu amigo, meu irmão,
Centro do meu coração,
Deus e Pai.
Pois com entranhas de Mãe
Quereis de mim ser comido,
Roubai todo meu sentido
Para vós
Prendei-me com fortes nós,
Iesu, filho de Deus vivo,
pois que sou vosso cativo,
que comprastes
Com o sangue que derramastes,
Com a vida que perdestes,
Com a morte que quisestes
Padecer.
Morra eu, por que viver
Vós possais dentro de mim;
Ganha-me, pois me perdi
Em amar-me.
Pois que para incorporar-me
E mudar-me em vós de todo,
Com um tão divino modo
Me mudais.
Quando na minha alma entrais
É dela fazeis sacrário,
De vós mesmo é relicário
Que vos guarda.
Enquanto a presença tarda
De vosso divino rosto,
O saboroso e doce gosto
Deste pão
Seja minha refeição
E todo o meu apetite,
Seja gracioso convite
De minha alma.
Ar fresco de minha calma,
Fogo de minha frieza,
Fonte viva de limpeza,
Doce beijo.
Mitigador do desejo
Com que a vós suspiro, e gemo,
Esperança do que temo
De perder.
Pois não vivo sem comer,
Como a vós, em vós vivendo,
Vivo em vós, a vós comendo,
Doce amor.
Comendo de tal penhor,
Nela tenha minha parte,
E depois de vós me farte
Com vos ver.
Amém.
Em Deus, meu criador de José de Anchieta
[...]
Não há coisa segura .
A vida não tem dura .
O bem se vai gastando.
[...]
Contente assim minh'alma ,
do doce amor de Deus toda ferida ,
o mundo deixa em calma ,
buscando a outra vida,
no qual deseja ser absorvida.
[...]
Santa Maria de José de Anchieta
Compaixão da Virgem na morte do Filho
Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,
e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,
que a morte tão cruel do filho chora tanto?
O seio que de dor amargado esmorece,
ao ver, ali presente, as chagas que padece?
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,
ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Olha como, prostrado ante a face do Pai,
todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas
pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
Olha, perante Anás, como duro soldado
o esbofeteia mau, com punho bem cerrado.
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,
agüenta opróbrios mil, punhos, escarros feios.
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira
do que duro lhe arranca a barba e cabeleira.
Olha com que azorrague o carrasco sombrio
retalha do Senhor a meiga carne a frio.
Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho,
e o sangue puro risca a face toda arminho.
Pois não vês que seu corpo, incivilmente leso,
mal susterá ao ombro o desumano peso?
Vê como a dextra má finca em lenho de escravo
as inocentes mãos com aguçado cravo.
Olha como na cruz finca a mão do algoz cego
os inocentes pés com aguçado prego.
Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo,
e c’o sangue a escorrer paga teu furto antigo!
Vê como larga chaga abre o peito, e deságua
misturado com sangue um rio todo d’água.
Se o não sabes, a mãe dolorosa reclama
para si quanto vês sofrer ao filho que ama.
Pois quanto ele aguentou em seu corpo desfeito,
tanto suporta a mãe no compassivo peito.
Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina
cheio de compaixão, procura a mãe divina.
Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada
a passagem: assim, tornou-se clara a estrada.
Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas,
ela o solo regou com lágrimas tremendas.
Procura a boa mãe, e a seu pranto sossega,
se acaso ainda aflita às lágrimas se entrega.
Mas se essa imensa dor tal consolo invalida,
porque a morte matou a vida à sua vida,
ao menos chorarás todo o teu latrocínio,
que foi toda a razão do horrível assassínio.
Mas onde te arrastou, mãe, borrasca tão forte?
que terra te acolheu a prantear tal morte?
Ouvirá teu gemido e lamento a colina,
em que de ossos mortais a terra podre mina?
Sofres acaso tu junto à planta do odor,
em que pendeu Jesus, em que pendeu o amor?
Eis-te aí lacrimosa a curtir pena inteira,
pagando o mau prazer de nossa mãe primeira!
Sob a planta vedada, ela fez-se corruta:
colheu boba e loquaz, com mão audaz a fruta.
Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida,
à própria boa mãe dá para sempre a vida,
e a seus filhos de amor que morreram na rega
do primeiro veneno, a ti os ergue e entrega.
Mas findou tua vida, essa doce vivência
do amante coração: caiu-te a resistência!
O inimigo arrastou a essa cruz tão amarga
quem dos seios, em ti, pendeu qual doce carga.
Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas,
ele, o fulgor, a glória, a luz em que divagas.
Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dóis:
era uma só e a mesma a vida de vós dois!
Pois se teu coração o conserva, e jamais
deixou de se hospedar dentro de teus umbrais,
para ferido assim crua morte o tragar,
com lança foi mister teu coração rasgar.
Rompeu-te o coração seu terrível flagelo,
e o espinho ensangüentou teu coração tão belo.
Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos,
quanto arrastou na cruz o filho, de tormentos.
Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida?
e não foste arrastada em morte parecida?
E como é que, ao morrer, não roubou teus sentidos,
se sempre uma alma só reteve os dois unidos?
Não puderas, confesso, agüentar mal tamanho,
se não te sustentasse amor assim estranho;
se não te erguesse o filho em seu válido busto,
deixando-te mais dor ao coração robusto.
Vives ainda, ó mãe, p’ra sofrer mais canseira:
já te envolve no mar uma onda derradeira.
Esconde, mãe, o rosto e o olhar no regaço:
eis que a lança a vibrar voa no leve espaço.
Rasga o sagrado peito a teu filho já morto,
fincando-se a tremer no coração absorto.
Faltava a tanta dor esta síntese finda,
faltava ao teu penar tal complemento ainda!
Faltava ao teu suplício esta última chaga!
tão grave dor e pena achou ainda vaga!
Com o filho na cruz tu querias bem mais:
que pregassem teus pés, teus punhos virginais.
Ele tomou p’ra si todo o cravo e madeiro
e deu-te a rija lança ao coração inteiro.
Podes mãe, descansar; já tens quanto querias:
Varam-te o coração todas as agonias.
Este golpe encontrou o seu corpo desfeito:
só tu colhes o golpe em compassivo peito.
Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lança,
o amor de nosso amor, que amou sem temperança!
Ó rio, que confluis das nascentes do Edém,
todo se embebe o chão das águas que retém!
Ó caminho real, áurea porta da altura!
Torre de fortaleza, abrigo da alma pura!
Ó rosa a trescalar santo odor que embriaga!
Jóia com que no céu o pobre um trono paga!
Doce ninho no qual pombas põem seus ovinhos
e casta rola nutre os tenros filhotinhos!
Ó chaga que és rubi de ornamento e esplendor,
cravas os peitos bons de divinal amor!
Ó ferida a ferir corações de imprevisto,
abres estrada larga ao coração de Cristo!
Prova do estranho amor, que nos força à unidade!
Porto a que se recolhe a barca em tempestade!
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta:
mas tu a todo o mal és medicina pronta!
Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga:
por ti, depõe do peito a dura sobrecarga!
Por ti, o pecador, firme em sua esperança,
sem temor, chega ao lar da bem-aventurança!
Ó morada de paz! sempre viva cisterna
da torrente que jorra até a vida eterna!
Esta ferida, ó mãe, só se abriu em teu peito:
quem a sofre és tu só, só tu lhe tens direito.
Que nesse peito aberto eu me possa meter,
possa no coração de meu Senhor viver!
Por aí entrarei ao amor descoberto,
terei aí descanso, aí meu pouso certo!
No sangue que jorrou lavarei meus delitos,
e manchas delirei em seus caudais benditos!
Se neste teto e lar decorrer minha sorte,
me será doce a vida, e será doce a morte!
Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas,
e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas?
Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto,
que a morte tão cruel do filho chora tanto?
O seio que de dor amargado esmorece,
ao ver, ali presente, as chagas que padece?
Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus,
ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux.
Olha como, prostrado ante a face do Pai,
todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai.
Olha como a ladrão essas bárbaras hordas
pisam-no e lhe retêm o colo e mãos com cordas.
Olha, perante Anás, como duro soldado
o esbofeteia mau, com punho bem cerrado.
Vê como, ante Caifás, em humildes meneios,
agüenta opróbrios mil, punhos, escarros feios.
Não afasta seu rosto ao que o bate, e se abeira
do que duro lhe arranca a barba e cabeleira.
Olha com que azorrague o carrasco sombrio
retalha do Senhor a meiga carne a frio.
Olha como lhe rasga a cerviz rijo espinho,
e o sangue puro risca a face toda arminho.
Pois não vês que seu corpo, incivilmente leso,
mal susterá ao ombro o desumano peso?
Vê como a dextra má finca em lenho de escravo
as inocentes mãos com aguçado cravo.
Olha como na cruz finca a mão do algoz cego
os inocentes pés com aguçado prego.
Ei-lo, rasgado jaz nesse tronco inimigo,
e c’o sangue a escorrer paga teu furto antigo!
Vê como larga chaga abre o peito, e deságua
misturado com sangue um rio todo d’água.
Se o não sabes, a mãe dolorosa reclama
para si quanto vês sofrer ao filho que ama.
Pois quanto ele aguentou em seu corpo desfeito,
tanto suporta a mãe no compassivo peito.
Ergue-te pois e, atrás da muralha ferina
cheio de compaixão, procura a mãe divina.
Deixaram-te uma e outro em sinais bem marcada
a passagem: assim, tornou-se clara a estrada.
Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas,
ela o solo regou com lágrimas tremendas.
Procura a boa mãe, e a seu pranto sossega,
se acaso ainda aflita às lágrimas se entrega.
Mas se essa imensa dor tal consolo invalida,
porque a morte matou a vida à sua vida,
ao menos chorarás todo o teu latrocínio,
que foi toda a razão do horrível assassínio.
Mas onde te arrastou, mãe, borrasca tão forte?
que terra te acolheu a prantear tal morte?
Ouvirá teu gemido e lamento a colina,
em que de ossos mortais a terra podre mina?
Sofres acaso tu junto à planta do odor,
em que pendeu Jesus, em que pendeu o amor?
Eis-te aí lacrimosa a curtir pena inteira,
pagando o mau prazer de nossa mãe primeira!
Sob a planta vedada, ela fez-se corruta:
colheu boba e loquaz, com mão audaz a fruta.
Mas a fruta preciosa, em teu seio nascida,
à própria boa mãe dá para sempre a vida,
e a seus filhos de amor que morreram na rega
do primeiro veneno, a ti os ergue e entrega.
Mas findou tua vida, essa doce vivência
do amante coração: caiu-te a resistência!
O inimigo arrastou a essa cruz tão amarga
quem dos seios, em ti, pendeu qual doce carga.
Sucumbiu teu Jesus transpassado de chagas,
ele, o fulgor, a glória, a luz em que divagas.
Quantas chagas sofreu, doutras tantas te dóis:
era uma só e a mesma a vida de vós dois!
Pois se teu coração o conserva, e jamais
deixou de se hospedar dentro de teus umbrais,
para ferido assim crua morte o tragar,
com lança foi mister teu coração rasgar.
Rompeu-te o coração seu terrível flagelo,
e o espinho ensangüentou teu coração tão belo.
Conjurou contra ti, com seus cravos sangrentos,
quanto arrastou na cruz o filho, de tormentos.
Mas, inda vives tu, morto Deus, tua vida?
e não foste arrastada em morte parecida?
E como é que, ao morrer, não roubou teus sentidos,
se sempre uma alma só reteve os dois unidos?
Não puderas, confesso, agüentar mal tamanho,
se não te sustentasse amor assim estranho;
se não te erguesse o filho em seu válido busto,
deixando-te mais dor ao coração robusto.
Vives ainda, ó mãe, p’ra sofrer mais canseira:
já te envolve no mar uma onda derradeira.
Esconde, mãe, o rosto e o olhar no regaço:
eis que a lança a vibrar voa no leve espaço.
Rasga o sagrado peito a teu filho já morto,
fincando-se a tremer no coração absorto.
Faltava a tanta dor esta síntese finda,
faltava ao teu penar tal complemento ainda!
Faltava ao teu suplício esta última chaga!
tão grave dor e pena achou ainda vaga!
Com o filho na cruz tu querias bem mais:
que pregassem teus pés, teus punhos virginais.
Ele tomou p’ra si todo o cravo e madeiro
e deu-te a rija lança ao coração inteiro.
Podes mãe, descansar; já tens quanto querias:
Varam-te o coração todas as agonias.
Este golpe encontrou o seu corpo desfeito:
só tu colhes o golpe em compassivo peito.
Chaga santa, eis te abriu, mais que o ferro da lança,
o amor de nosso amor, que amou sem temperança!
Ó rio, que confluis das nascentes do Edém,
todo se embebe o chão das águas que retém!
Ó caminho real, áurea porta da altura!
Torre de fortaleza, abrigo da alma pura!
Ó rosa a trescalar santo odor que embriaga!
Jóia com que no céu o pobre um trono paga!
Doce ninho no qual pombas põem seus ovinhos
e casta rola nutre os tenros filhotinhos!
Ó chaga que és rubi de ornamento e esplendor,
cravas os peitos bons de divinal amor!
Ó ferida a ferir corações de imprevisto,
abres estrada larga ao coração de Cristo!
Prova do estranho amor, que nos força à unidade!
Porto a que se recolhe a barca em tempestade!
Refugiam-se a ti os que o mau pisa e afronta:
mas tu a todo o mal és medicina pronta!
Quem se verga em tristeza, em consolo se alarga:
por ti, depõe do peito a dura sobrecarga!
Por ti, o pecador, firme em sua esperança,
sem temor, chega ao lar da bem-aventurança!
Ó morada de paz! sempre viva cisterna
da torrente que jorra até a vida eterna!
Esta ferida, ó mãe, só se abriu em teu peito:
quem a sofre és tu só, só tu lhe tens direito.
Que nesse peito aberto eu me possa meter,
possa no coração de meu Senhor viver!
Por aí entrarei ao amor descoberto,
terei aí descanso, aí meu pouso certo!
No sangue que jorrou lavarei meus delitos,
e manchas delirei em seus caudais benditos!
Se neste teto e lar decorrer minha sorte,
me será doce a vida, e será doce a morte!
Não bastam forças humanas de José de Anchieta
Não bastam forças humanas
Não digo para louvar,
Mas nem para bem cuidar
As mercês tão saborosas
Que com amor singular.
Deus eterno,
Abrindo o peito paterno,
Para que possa escapar
Do bravo fogo do inferno
E salvação alcançar.
Não digo para louvar,
Mas nem para bem cuidar
As mercês tão saborosas
Que com amor singular.
Deus eterno,
Abrindo o peito paterno,
Para que possa escapar
Do bravo fogo do inferno
E salvação alcançar.
História de uma viagem feita a terra do Brasil de Jean Lery
Voltando ao meu assunto, antes de falar nas carnes, peixes, frutas e outros mantimentos bem diversos dos da Europa, direi qual a bebida que usam os selvagens e o modo de faze-la. Cumpre, desde logo, notar que os homens não se envolvem de maneira nenhuma na preparação da bebida, a qual, como a farinha, está a cargo das mulheres. As raízes de aipim e mandioca, que servem de principal alimento aos selvagens, são também utilizadas no preparo de uma bebida usual. Depois de as cortarem em rodelas finas, como fazemos com os rabanetes, as mulheres fervem em grandes vasilhas de barro cheias de água, até que amoleçam; tiram-nas então do fogo e as deixam esfriar. Feito isso acocoram-se em torno das vasilhas e mastigam as rodelas jogando-as depois em outra vasilha, em vez de as engolir, para uma nova fervura, mexendo-as com um pau até que tudo esteja bem cozido. Feito isso, tiram do fogo a pasta e a põem a fermentar em vasos de barro de capacidade igual a uma pipa de vinho de Borgonha. Quando tudo fermenta e espuma, cobrem os vasos e fica a bebida pronta para o uso. Esses vasos têm o feitio das grandes cubas de barro nas quais vi fazer-se a lixívia em alguns lugares do Bourbonais e da Auvergne; são entretanto mais estreitas no alto que no bojo.
Fazem o mesmo com a avati, a fim de preparar uma bebida do milho. São as mulheres, como já disse, que tudo fazem nessa preparação, tendo os homens a firme opinião de que se eles mastigarem as raízes ou o milho a bebida não sairá boa.”
“Antes de terminar tal assunto, e a fim de que os leitores se convençam de que se tivessem vinho à vontade enxugariam galhardamente o copo, vou contar uma história tragicômica, que em sua aldeia me contou um mussacá, isto é, um bom e hospitaleiro pai de família.
‘Surpreendemos uma vez, disse ele na sua rude linguagem, uma caravela de pêros (isto é, portugueses, que como já referi são inimigos mortais dos nossos tupinambás) na qual, de mortos e comidos todos os homens e recolhida a mercadoria existente, encontramos grandes caramemos (tonéis e outras vasilhas de madeira) cheias de bebida que logo tratamos de provar. Não sei qual qualidade de cauim era, nem se o tendes no vosso país; só sei dizer que depois de bebermos ficamos por três dias de tal forma prostrados e adormecidos que não podíamos despertar.’ É verossímil que fossem tonéis de bom vinho da Espanha, com os quais os selvagens, sem o saber, festejaram a Baco. Não é pois de admirar que o nosso homem se tivesse sentido tão repentinamente atordoado.
No que diz nos diz respeito, ao chegarmos a esse país procuramos evitar a mastigação no preparo do cauim e faze-lo de modo mais limpo. Por isso pilamos raízes de aipim e mandioca com milho, mas, para dizer a verdade, a experiência não provou bem. Pouco a pouco, nos habituamos a beber o cauim da outra espécie, embora não o fizéssemos comumente, pois tendo cana à vontade punhamo-la de infusão por alguns dias na água depois de refresca-la um pouco por causa do grande calor; e assim açucarada bebíamos a água com grande prazer.”
“Imediatamente depois de morto o prisioneiro, a mulher (já disse que a concedem a alguns) coloca-se junto do cadáver e levanta curto pranto; digo propositadamente curto pranto porque essa mulher, tal qual o crocodilo que mata o homem e chora junto dele antes de comê-lo, lamenta-se e derrama fingidas lágrimas sobre o marido mas sempre na esperança de comer-lhe um pedaço. Em seguida, as outras mulheres, sobretudo as velhas, que são mais gulosas da carne humana e anseiam pela morte dos prisioneiros chegam com a água fervendo, esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a epiderme; e o tornam tão branco como na mão de cozinheiros os leitões que vão para o forno. Logo depois o dono da vítima e alguns ajudantes abrem o corpo e o espostejam com tal rapidez que não faria melhor um carniceiro de nossa terra ao esquartejar um carneiro. E então, incrível crueldade, assim como os nossos caçadores jogam a carniça aos cães para torna-los mais ferozes, esses selvagens pegam os filhos uns após outros e lhes esfregam o corpo, os braços, e as pernas com o sangue inimigo a fim de torna-los mais valentes.
Depois da chegada dos cristãos a esse país, principiaram os selvagens a cortar e retalhar o corpo dos prisioneiros, animais e outras presas com facas e ferramentas dadas pelo estrangeiro, o que faziam antes com pedras aguçadas como me foi dito por um ancião.
Todas as partes do corpo, inclusive as tripas depois de bem lavadas, são colocadas no moquém, em torno do qual as mulheres, principalmente as gulosas velhas, se reúnem para recolher a gordura que escorre pelas varas dessas grandes e altas grelhas de madeira; e exortando os homens a procederem de modo que elas tenham sempre tais petiscos, lambem os dedos e dizem: iguatu, o que quer dizer ‘está muito bom’.”
terça-feira, 14 de junho de 2011
Das arvores agrestes do Brasil de Frei Vicente do Salvador
carvalhos, vinháticos, angelins e outras não conhecidas em Espanha,
de madeiras fortíssimas para se poderem fazer delas fortíssimos
galeões e, o que mais é, que da casca de almas se tira estopa para se
calafetarem e fazem cordas para enxárcia e amarras, do que tudo se
aproveitam os que querem cá fazer navios, e se pudera aproveitar
el-rei se cá os mandara fazer. Mas os índios naturais da terra as
embarcações de que usam são canoas de um só pau, que lavram a
fogo e a ferro; e há paus tão grandes que ficam depois de cavadas
com dez palmos de boca de bordo a bordo, e tão compridas que
remam a vinte remos por bandas.
terça-feira, 7 de junho de 2011
Santa inês
(José de Anchieta)
Na vinda de sua Imagem
Cordeirinha linda,
Como folga o povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo. Cordeirinha santa,
De Jesus querida,
ossa santa vida
O Diabo espanta.
Por isso vos canta
Com prazer o povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo. Nossa culpa escura
Fugirá depressa,
Pois vossa cabeça
Vem com luz tão pura.
Vossa formosura
Honra é do povo,
Porque vossa vinda
Lhe dá lume novo. Virginal cabeça,
Pela fé cortada,
Com vossa chegada
Já ninguém pereça;
Vinde mui depressa
Ajudar o povo,
Pois com vossa vinda
Lhe dais lume novo. Vós sois cordeirinha
De Jesus Fermoso;
Mas o vosso Esposo
já vos fez Rainha.
Também padeirinha
Sois do vosso Povo,
pois com vossa vinda,
Lhe dais trigo novo.
Não é de Alentejo
Este vosso trigo,
Mas Jesus amigo
É vosso desejo.
Morro, porque vejo
Que este nosso povo
Não anda faminto
Deste trigo novo.
Santa Padeirinha,
Morta com cutelo,
Sem nenhum farejo
É vossa farinha
Ela é mezinha
Com que sara o povo
Que com vossa vinda
Terá trigo novo.
O pão, que amassasses
Destro em vosso peito,
É o amor perfeito
Com que Deus amastes.
Deste vos fartasses,
Deste dais ao povo,
Por que deixe o velho
Pelo trigo novo.
Não se vende em praça,
Este pão da vida,
Porque é comida
Que se dá de graça.
Oh preciosa massa!
Oh que pão tão novo
Que com vossa vinda
Quer Deus dar ao povo!
Oh que doce bolo
Que se chama graça!
Quem sem ela passa
É mui grande tolo,
Homem sem miolo
Qualquer deste povo
Que não é faminto
Deste pão tão novo.
A Carta de Pero Vaz de Caminha
A Carta De Pero Vaz De Caminha
Senhor:
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer.
Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo:
A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã- Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.
Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais!
E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos.
Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz.
Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças; e ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças -- ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos
em direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez
horas pouco mais ou menos.
Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.
Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si.
E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens.
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.
Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete
vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal
grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.
Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitânia. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos.
Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.
E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.
E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento
duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.
Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço
e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram
sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora.
Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.
Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.
Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças – ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.
Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e o levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou
por qualquer coisa que homem lhes queria dar.
Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais.
Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de
azulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e
suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.
Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém.
Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornamo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu , à vista de nós, àquele que da primeira vez agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo.
Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos tornamos e eles foram-se.
À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o Capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem de noite.
Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperavel, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique,
em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção.
Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço. E
alguns deles se metiam em almadias -- duas ou três que aí tinham -- as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves
Acabada a pregação, voltou o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e nós todos, obra de tiro de pedra, atrás dele.
Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não.
Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha.
Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra.
Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais
vinha um tão grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.
E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem.
E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados.
Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois
homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar.
E que, portanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.
E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado.
Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e também para folgarmos.
Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suas
setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam.
Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam.
Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos.
A gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém do rio.
Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas.
Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele.
Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim.
Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha.
Também andava aí outra mulher moça com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum.
Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós
quantas coisas que lhe demandávamos acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia.
Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco. O Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela direito ao Capitão, para lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa,
mas por amostra. Depois houve-a o Capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza.
Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.
Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado.
Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles
folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima.
E então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima
e sai a água por muitos lugares.
E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia.
Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar.
O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar de lá para aquém.
Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram – do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isso andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não
pode mais ser.
Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos nenhuma casa ou maneira delas.
Mandou o Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes – disse ele – que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Douro e Minho.
E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.
À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza.
E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar, e todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos.
Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles
andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas.
Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos.
E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite.
Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.
Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem. Mas, quando se fez tarde
fizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles.
Resgataram lá por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse.
E com isto vieram; e nós tornámo-nos às naus.
À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa.
Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer.
Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.
Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.
Era já a conversação deles conosco tanta, que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.
O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e aoutras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram.
Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos, somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maiores
que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!
Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que – eu creio -- o Capitão a Ela há de enviar.
À quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos.
Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se, já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os rabos curtos.
Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda a vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite.
E assim não houve mais este dia que para escrever seja.
À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz.
Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para
cima. E vinha tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí.
Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta.
Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade.
Andavam todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis.
Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água que, a nosso parecer, era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água.
Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homens as não podem contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos.
Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.
E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons
rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.
Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim.
Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.
Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso,
em tal maneira que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou cinco, a saber: o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem.
Um dos que o Capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.
E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar.
Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixo
do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão.
Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e cinqüenta ou mais.
Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.
E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.
Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros.
Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse
alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos.
Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devoção.
Esses, que à pregação sempre estiveram, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com
crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse a cada um a sua ao pescoço. Pelo que o padre frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta.
Isto acabado – era já bem uma hora depois do meio-dia – viemos às naus a comer, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.
E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que
todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje também comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.
Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação.
Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer.
Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.
Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa.
Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.
Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os
achávamos como os de lá.
Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.
Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.
E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria. Quando mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.
E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo.
E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d'Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha
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